Membros da comunidade de brasileiros relatam mudanças na rotina e apreensão após nova operação contra imigrantes


Agentes do ICE fazem uma batida na cidade de Chelsea, em Massachusetts, nos EUA - Brian Snyder - 26.set.2025/Reuters

Porto Velho, RO - No celular do mineiro Júnior e da mato-grossense Lorena, os grupos de WhatsApp não paravam de receber mensagens desde o primeiro fim de semana de setembro. Todas com menções ao Serviço de Imigração e Alfândega dos EUA (ICE, na sigla em inglês —ou "gelo", um apelido com a tradução do termo para o português).

Eram os primeiros sinais de que longas semanas viriam pela frente para imigrantes em Massachusetts, estado americano onde os brasileiros formam o maior grupo de estrangeiros —oficialmente, cerca de 150 mil vivem no estado, mas o número pode chegar a mais de 300 mil considerando os muitos não registrados, segundo o Instituto Diáspora Brasil, uma organização sem fins lucrativos com atuação local.

Foi em 6 de setembro que o governo Donald Trump deu início à chamada operação Patriot 2.0, focada no estado democrata.

"Se você vier ao nosso país ilegalmente e violar nossas leis, nós vamos caçá-lo, prendê-lo, deportá-lo, e você nunca mais voltará", dizia o comunicado público do Departamento de Segurança Interna (DHS, na sigla em inglês).

A operação ocorreu após semanas de relativa calmaria na região de Boston, sede da área metropolitana que tem cidades brasileiríssimas como Framingham e Milford —e a expectativa é que a ofensiva dure "semanas".

Ao contrário dos primeiros meses do governo Trump, quando muitos acreditavam que apenas "criminosos" seriam o alvo do ICE, agora os brasileiros têm a certeza de que qualquer um pode ser detido, como mostram as conversas em grupos de WhatsApp que concentram milhares de imigrantes no Estado e onde os imigrantes não documentados (ou indocumentados) são os mais ativos.

A BBC News Brasil passou as últimas semanas nesses grupos observando como a recente operação alterou rotinas e gerou apreensão na comunidade brasileira.

As mensagens reproduzidas na reportagem são fiéis ao que foi publicado nas conversas, mas os nomes foram trocados e as datas exatas não foram informadas para não haver identificação.

Os grupos recebem milhares de mensagens por dia. Em geral, a manhã começa com informações sobre blitze do ICE pelo estado, imagens de detidos e de carros abandonados no meio da rua, na esperança de que algum parente veja a mensagem.

Fundadora de uma rede de voluntários que recebe ligações de brasileiros e vai a locais documentar e filmar prisões, Lorena Betts, 37, conta que tem se multiplicado nos últimos dias casos de pessoas que "simplesmente desapareceram" ao serem detidas.

Segundo ela, esses grupos surgem como ferramenta essencial da comunicação imigrante.

"Eles prendem em Boston, no outro dia [a pessoa] está Nova York, no outro na Louisiana, porque sabem que no sul dos EUA os juízes dão sentenças mais duras", conta Betts, que vive no país de forma legal após se casar com um americano e atualmente é candidata à deputada em Massachusetts pelo partido Democrata.

Somam-se aos alertas o compartilhamento de angústias, como o desejo de voltar ao Brasil, e dicas sobre como agir nesse momento de cerco aos imigrantes. Há sugestões como evitar sair com os filhos ou falar português nas ruas.

Criador e administrador de um dos grupos que a BBC News Brasil observou, o mineiro Júnior, 27, diz que desde a nova operação do ICE as mensagens têm surgido todo dia religiosamente às 5h.

"É o horário que os agentes estão se reunindo, então o grupo já começa a pipocar com notícias", conta Júnior, entregador de aplicativo na região de Lowell.

Ele deixou Caratinga, em Minas, rumo aos EUA há 3 anos, e resolveu criar o grupo quando Trump retornou à Presidência, em janeiro, com o objetivo de formar uma rede que compartilhasse informações focadas em imigração.

"Está ajudando demais a galera porque carros do ICE e agentes muitas vezes estão disfarçados, então tem vídeo do veículo, a placa", conta Júnior, que reconhece, porém, que às vezes há também desinformação e pistas falsas.

A operação Patriot 2.0 em Massachusetts é vista como uma resposta do governo Trump à prefeita de Boston, Michelle Wu. Ela, democrata, desafiou o governo ao se manifestar publicamente contra a escala das blitze migratórias.

Boston é considerada uma cidade-santuário, ou seja, tem como política não colaborar com o governo federal na repressão aos imigrantes.

"Se Boston não proteger seus cidadãos contra crimes cometidos por imigrantes ilegais, este Departamento de Justiça o fará", disse ao governo ao lançar a operação.

Essa é terceira onda de operações do ICE no estado, depois de avanços em março e em maio.

Trump se elegeu com a promessa de frear a imigração ilegal em direção aos EUA e deportar pessoas que vivem no país sem documentos, sob o argumento de que uma imigração descontrolada estaria "envenenando o sangue" do país", "tomando vagas de emprego" de americanos e pressionando serviços públicos. Críticos e entidades defensoras de liberdades civis dizem que a Casa Branca está violando direitos constitucionais.

Segundo o DHS, 400 mil pessoas já foram deportadas desde que Trump voltou à Casa Branca —um número que inclui pessoas detidas no país ou barradas nas fronteiras.

Quase 2.000 desses imigrantes já chegaram ao Brasil em voos de deportação desde fevereiro.

E, atualmente, há cerca de 60 mil imigrantes presos em centros de detenção, um recorde segundo bancos de dados mantidos por pesquisadores e divulgados pela imprensa americana. Quando Trump assumiu a Presidência, havia 39 mil detidos. A meta do governo é prender 3.000 imigrantes por dia.

Manifestantes entram em confronto após uma operação realizada pelo Serviço de Imigração e Controle de Alfândega (ICE) Manifestantes entram em confronto após uma operação realizada pelo Serviço de Imigração e Controle de Alfândega (ICE)

A política de Trump também fez o número de imigrantes que conseguem entrar no país atravessando ilegalmente a fronteira com o México despencar 92% em relação ao ano anterior, segundo dados do governo americano.

A BBC News Brasil pediu detalhes ao ICE sobre as detenções de brasileiros e em Massachusetts, mas não obteve resposta.

Drone no céu

Na terceira semana de setembro, mensagens começaram a chegar direto de um condomínio conhecido por abrigar imigrantes brasileiros ao noroeste de Boston.

Fotos e vídeos mostravam carros parados nas saídas e até no estacionamento do conjunto de prédios. Durante dois dias, moradores relatavam estar encurralados, com medo de sair de casa.

No dia 16 de setembro, um novo vídeo chegou mostrando imagens aéreas do condomínio. Os moradores passaram a colocar um drone no ar, aproximando a câmera de carros parados para saber se havia agentes à espera deles.

Nos EUA, se o drone pesa menos de 250 g e só é utilizado para "voo recreativo", não é necessário registro de permissão. Mas é preciso se ater a altura máxima de 120 metros. A BBC News Brasil não conseguiu confirmar se os moradores seguiram as regras.

Os imigrantes costumam dizer nos grupos que o único lugar onde não são alvos é dentro de casa. Uma mensagem feita com animação encaminhada faz apelo para as pessoas não saírem para trabalhar.

"Uma semana ou duas sem trabalhar vai te deixar rico? Qual seria melhor, perder o trabalho e depois consegue outro ou ficar meses trancados em detenção longe dos filhos?", diz o cartaz.

Sem um mandado assinado por um juiz, agentes do ICE não podem entrar em residências.

Em geral, eles têm em mãos um mandado administrativo quando buscam alguém específico, o que permite a prisão dessa pessoa em local público. Eles também podem fazer abordagens contra quem consideram "suspeitos" e detê-los se encontrarem irregularidades.

Em 8 de setembro, a Suprema Corte dos EUA autorizou o governo Trump a abordar e deter imigrantes com base em sua raça ou idioma. Isso é, o fato de uma pessoa falar inglês com sotaque latino por si só já pode ser um critério para uma abordagem do ICE como uma pessoa "suspeita".

Enxergada pela comunidade como uma "carta branca" para as detenções, a permissão judicial somada à nova operação em Massachusetts têm ampliado a mudança de comportamento.

Em uma das mensagens, uma mulher encaminhou um vídeo com dicas para aprender a linguagem dos sinais. Em áudio, ela pediu para os companheiros de chat aprenderem a usar as mãos para se comunicar: "nada de falar mais".

Outra imigrante pede para brasileiros ficarem "americanizados". Entre as dicas, além de não levar crianças que falam português para a rua, estão usar óculos escuros e colar um adesivo de apoiador de Trump no carro.

Pelas informações que chegam aos grupos, o mineiro Júnior avalia que o ICE de fato não se apega aos mandados e "prende e depois pergunta".

Em processo de obtenção do green card após chegar aos EUA com o visto U (dado a vítimas de crimes em solo americano) que herdou da mãe, ele conta que a situação causa apreensão nele, mesmo estando amparado pela lei. O mineiro diz que também teme pela namorada e pelo filho dela, brasileiros que vivem de forma ilegal.

"Se veem que fala inglês mal, te pegam na hora, não quer nem saber se você é cidadão, se tem green card", conta o brasileiro. Apesar do temor, ele diz não ter vontade de voltar ao Brasil, onde, em um mês de férias no ano passado, foi assaltado.

Apesar da tentativa de monitoramento dos grupos, os brasileiros sabem que a estratégia pode não ser tão bem sucedida.

"Eles são muito rápidos, em quatro minutos já prendem e somem do lugar", relata Júnior.

Mas há redes de voluntários como a Luce, formada por diversas organizações comunitárias em Massachusetts. O grupo atua quando recebe ligações de imigrantes denunciando possíveis ações do ICE, enviando pessoas para verificar e confirmar as informações.

Também há outros aplicativos específicos que permitem informar onde há blitze, vistos com ceticismo pela comunidade brasileira, que temem serem rastreados pelo telefone.

A Luce criou uma linha para imigrantes que não sabem falar inglês ou que tem medo de procurar as autoridades locais em casos de violação de direitos básicos em abordagens violentas, por exemplo.

"As pessoas ligam, passam detalhes, e os voluntários da região mandam o verificador, que vai com telefone em mão para filmar", diz Lorena Betts, há 15 anos nos EUA e responsável pelo braço em português da Luce.

De Comodoro (MT), ela chegou ao país num programa de au pair (babá) e se aproximou do tema da imigração ao trabalhar como intérprete de português nos tribunais de Massachusetts.

"Não vamos interferir no trabalho policial, só exercitar o direito constitucional de documentar", conta ela sobre o trabalho do grupo.

Quando encontram ruas vazias, os voluntários podem bater de porta em porta, em busca de quem pode reconstituir o que aconteceu ou fornecer imagens de câmeras de segurança.

Também levam imigrantes para reuniões com advogados e até ajudam em compras de supermercado caso os moradores não possam sair ou perderam a renda com a prisão de algum membro da família.

Os voluntários atuam em grupos próprios no WhatsApp ou dentro de chats públicos, quer sejam de igrejas ou focados nas informações sobre ICE.

Quando o mês de setembro vai chegando ao fim, ainda não há sinais, pelo menos nos grupos de WhatsApp, de que a operação Patriot 2.0 esteja perto de ser encerrada em Massachusetts.

Mas há esperança entre os brasileiros de que ela não continue em outubro.

Fonte: Folha de São Paulo