
Netflix/Reprodução
Porto Velho, RO - “Você gosta de mim?”, pergunta de forma insistente e descontrolada o personagem adolescente Jamie Miller à psicóloga forense Briony Ariston, que permanece calada. Desesperado, Jamie avança sobre ela, gritando e repetindo a mesma pergunta.
A psicóloga, enfim, responde que é uma profissional e que estava lá para desempenhar o seu papel. Raivoso e enfurecido, Jamie parte para a agressão física, sendo contido e retirado da sala por um policial.
A cena é do terceiro episódio da série britânica Adolescência, sucesso de público e de crítica, disponível na Netflix. Em quatro episódios, a série conta a história de um adolescente de 13 anos acusado de assassinar a facadas uma colega de escola.
Com texto afiado e atuações primorosas, todos os episódios da série são filmados em tomada única, provocando no telespectador uma sensação de realidade e de tensão que cresce ao longo das cenas. Do ponto de vista da dramaturgia, a merece muitos elogios.
O maior mérito da obra, no entanto, é provocar discussões — especialmente sobre a educação de adolescentes. Como é possível que um garoto de 13 anos, aparentemente comum e sem histórico significativo de delinquência, cometa um assassinato brutal contra uma colega da mesma idade? Onde os pais falharam? De que forma a escola pode ter contribuído? Qual o papel das redes sociais nesse processo? A série suscita reflexões sobre múltiplas dimensões. Neste artigo, vou me concentrar na relação entre escola e adolescentes — tema do segundo episódio, ambientado integralmente em uma escola pública da Inglaterra.
Fundamentalmente dominados pelas emoções, os adolescentes são presas fáceis para os algoritmos
A cena entre Jamie e a psicóloga ilustra uma das principais diferenças entre o que a escola se propõe a ser e como os adolescentes percebem o mundo. Pesquiso adolescência em contextos escolares há décadas e, por isso, leio publicações de diversas áreas — da sociologia à educação, da psicologia à neurociência e medicina. Um ponto comum entre esses campos é o reconhecimento de que o comportamento adolescente é guiado sobretudo pelas emoções.
Embora haja, nessa fase, um progresso cognitivo que amplia a capacidade de raciocinar e abstrair, é a emoção que determinará o desejo — ou não — de estudar, conviver, estar presente, gostar de uma disciplina ou criar vínculo com professores. A emoção sustenta os laços com instituições, famílias, grupos de amigos, escolhas de carreira e com o próprio saber. Também será a emoção, salvo em situações de vulnerabilidade extrema, o fator determinante para o abandono desses vínculos.
O desespero de Jamie diante da recusa da psicóloga em responder se gostava dele revela justamente essa dificuldade em separar o vínculo emocional da relação institucional e racional. O comportamento do garoto também está carregado de desconfiança em relação ao mundo adulto, de provocações que tentam desestabilizar o interlocutor e desnudar sua suposta hipocrisia. Ao mesmo tempo, há forte necessidade de afeto e aceitação por parte desses mesmos adultos.
Projetos interdisciplinares, escuta ativa e valores humanos devem estar no centro da proposta pedagógica
Jamie entra em crise ao descobrir que não verá mais a psicóloga após aquela sessão. Sente-se abandonado e traído. Age como alguém com poucos recursos emocionais para lidar com situações de tensão: partindo para agressões e ameaças sempre que se sente acuado.
Como seres profundamente movidos pelas emoções, os adolescentes tornam-se presas fáceis para os algoritmos das redes sociais — o que, vale lembrar, também acontece com os adultos. Ao vermos um post, a primeira reação costuma ser emocional: curtimos, rejeitamos ou ignoramos, sem grandes elucubrações.
Em seguida, buscamos outro post que nos traga satisfação imediata — um ciclo interminável sustentado por um cardápio infinito de conteúdo. E, quando se trata de uma publicação própria, a expectativa por aprovação, o medo dos haters e a busca por autoaceitação nos empurram ainda mais para dentro desse universo.
Uma pesquisa recente do Opinion Box revelou que 55% dos usuários do Instagram acessam o aplicativo várias vezes por dia — e 17% sequer o fecham. Qualquer ação repetida continuamente tende a se tornar um hábito difícil de romper. Nosso cérebro passa a funcionar de maneira muito similar à lógica dos próprios algoritmos. Condicionamo-nos a repetir comportamentos baseados em julgamentos rápidos e na expectativa de satisfação instantânea – este é o papel do feed infinito.
Esse processo aumenta a ansiedade, reduz a tolerância a atividades mais demoradas e nos vicia em avaliar situações complexas com base em emoções primitivas. Se isso já ocorre conosco, adultos, com maior capacidade de autorregulação, imagine o impacto sobre o cérebro adolescente, ainda em formação.
Para complicar ainda mais, estudos em neurociência mostram que, no início da adolescência, o cérebro passa por uma “limpeza sináptica”: muitas das memórias da infância ficam inacessíveis à consciência, criando um enorme vazio no repertório de prazeres e diminuindo o funcionamento do sistema de recompensa.
Como resultado, o adolescente simplesmente se esquece das emoções que lhe davam, por exemplo, alguma alegria durante a infância. Surge o tédio, a irritabilidade e a busca por situações de risco — afinal, para sentir o mesmo prazer da infância, são necessárias doses mais intensas de emoção e novidade.

Créditos: Reprodução Netflix
Além disso, adolescentes tendem a medir mal as consequências de seus atos, apresentam dificuldade de concentração, enfrentam inseguranças intensas — visíveis na timidez até diante de adultos com os quais mantinham intimidade na infância — e sofrem com problemas de autoimagem, agravados pelas mudanças corporais. Também têm dificuldades em demonstrar empatia, em parte porque ainda não viveram as situações mais dramáticas da vida.
Voltemos à realidade das escolas. Historicamente, cabe a elas promover o desenvolvimento dos alunos por meio do ensino. Mais do que isso, são responsáveis por garantir a transmissão do conhecimento construído pela humanidade ao longo do tempo.
Em sua essência, as escolas operam como a psicóloga da série: institucional e racionalmente, buscando cumprir seu papel social. Essa postura, no entanto, já cria uma barreira para o diálogo com a experiência emocional dos adolescentes.
Mesmo abstraindo essas questões de fundo, basta imaginar uma aula comum. Quantos elementos emocionais estão presentes no espaço-tempo daquela atividade? Tristeza por problemas familiares, timidez, disputas entre grupos, paixões, tédio, impulsos de risco, vício em estímulos audiovisuais e nos julgamentos imediatos das redes — todos esses fatores coexistem.
O professor compete com todos eles enquanto tenta ensinar conceitos complexos de física, química, biologia e outras disciplinas. Uma missão muito difícil, talvez uma das tarefas mais difíceis do nosso tempo.
O mais cruel é que, se o professor não conseguir prender a atenção dos alunos, surgirá o discurso de que ele é obsoleto ou mal formado. Ou então, recairá sobre os próprios alunos a culpa, como se fossem desinteressados ou naturalmente indisciplinados. Em outros casos, a responsabilidade será atribuída exclusivamente à escola. A série, inclusive, flerta com esses discursos ao longo de seu segundo episódio.
Essas interpretações simplistas e moralistas (que, não por acaso, partem do mesmo julgamento emocional rápido que mencionamos antes) não eximem escolas e docentes de responsabilidade por eventuais fracassos. Há, sim, falhas graves quando ignoram o universo emocional presente em seus ambientes e o acúmulo de conhecimento científico sobre como educar adolescentes.
Se a escola do seu filho propõe eliminar os livros físicos como estratégia de inovação, o mais provável é que esteja ignorando esses aspectos e se aliando a interesses comerciais. Se a autoridade responsável pela rede de ensino defende a retirada de autonomia docente e o uso intensivo de plataformas digitais, também está ignorando essa discussão – e, muito provavelmente, atuando em favor de empresas do setor. Se a escola organiza-se apenas em torno de provas, exames e vestibulares, contribui para intensificar o mal-estar difuso que tantos adolescentes vivenciam.
O estereótipo do adolescente sempre violento e desrespeitoso não resiste a uma análise minimamente crítica
Essas três situações são percebidas pelos adolescentes como formas de abandono. Em resposta, muitos criam um mundo paralelo, inacessível para a maioria dos adultos — um universo onde as emoções, mesmo as negativas, são dominantes. O bullying, por exemplo, é um fenômeno que se fortalece nesse espaço emocional subterrâneo.
A dificuldade de compreender o universo adolescente é retratada de forma magistral na série. É natural que, por suas especificidades, os adolescentes construam barreiras de proteção, buscando viver em um mundo próprio, distante dos adultos mais próximos. É assim que eles buscarão desenvolver a sua própria singularidade e a sua autonomia.
Mas o distanciamento é prerrogativa deles. Aos adultos — inclusive à escola — cabe respeitar essas características da idade, mas também atuar pedagogicamente, de maneira sistemática e planejada, para afirmar os valores historicamente eleitos pela humanidade: solidariedade, respeito à diversidade, generosidade, convivência, disciplina, paciência, justiça, alegria. Os conteúdos escolares devem estar a serviço desses valores. Caso contrário, perderão sentido.
O preconceito e a tanatocracia
Quando vi a propaganda da série na própria Netflix, meu interesse foi imediato. Mas, ao conhecer o roteiro, veio a apreensão: seria mais uma obra a retratar adolescentes como potenciais criminosos, desrespeitosos e agressivos? Temi que ela reforçasse o desânimo entre os profissionais encarregados de educar essa faixa etária. Receei que contribuísse para o esvaziamento do papel das figuras de autoridade — tão absolutamente necessárias para educar adolescentes, sempre ávidos por referências fortes.
Essa preocupação tem base. Pesquisas mostram que adolescentes sofrem profundo preconceito e discriminação. Consomem menos drogas e são menos promíscuos do que os adultos. A violência nas escolas, embora real e grave, não pode ser considerada maior do que a verificada em famílias, no trânsito, em ambientes de lazer ou de trabalho. Estupros, homicídios, assaltos, violência psicológica e feminicídios são, em esmagadora maioria, cometidos por adultos.
Mesmo com todas as dificuldades apontadas nos estudos sobre essa fase da vida, o estereótipo do adolescente sempre violento e desrespeitoso não resiste a uma análise minimamente crítica. Escolas — que recebem centenas ou milhares de pessoas diariamente — são, com frequência, palco de trocas afetivas, aprendizagem real, vínculos entre alunos e professores, acolhimento e crescimento. Apesar das críticas que fazem, adolescentes costumam ver a escola como espaço de possibilidades e futuro.
Fico pensando se o sentimento de tragédia iminente que parece dominar o nosso tempo — conceito que Gilles Lipovetsky chamou de tanatocracia em A Era do Vazio — não está por trás dessa sensação constante de que tudo está piorando, especialmente quando lidamos com adolescentes. A série expõe episódios de misoginia entre adultos, mau uso das redes por figuras inescrupulosas, explosões de raiva de homens contra mulheres, o desenrolar de um assassinato brutal.
Ainda assim, o título remete exclusivamente à adolescência. Essa associação reforça o medo social que muitos adultos têm dos jovens — um medo alimentado por preconceito. É com base nesse temor que a série atrai seu público e gera discussões nas redes. A Netflix, nesse caso, funciona como o próprio algoritmo. Nós, adultos, percebemos isso?

Créditos: Netflix / Reprodução
Afinal, é possível educar adolescentes?
Não faltam boas pesquisas apontando casos de sucesso de escolas, professores e redes de ensino na educação de adolescentes. O ponto comum entre elas é o investimento na construção de um ambiente coletivo, capaz de acolher e compreender as especificidades dessa faixa etária. Um gestor escolar precisa, portanto, fazer também a gestão das adolescências.
Também fundamental que a adolescência seja discutida no próprio currículo escolar, por meio de projetos interdisciplinares. As pesquisas também indicam a urgência de defender certos valores (frequentemente desvalorizados) que continuam sendo essenciais à educação e à saúde mental: reconhecer que o aprendizado é um processo lento, que não se dá no ritmo das redes sociais ou dos games, nem se alinha à linearidade do calendário escolar.
As pesquisas apontam que é preciso valorizar a capacidade narrativa dos estudantes — ou seja, a fala e a expressão verbal de suas angústias. É essencial promover vivências presenciais com a diferença, em contraste com o convívio virtual desregrado e gerador de ódio. É urgente resgatar a contemplação da vida sem ruído, inclusive o interno. Valorizar a tradição, o pertencimento, o passado, a história e a identidade. É preciso valorizar e discutir as possibilidades de vida amorosa e a importância das redes de apoio, incluindo as amizades.
Sem isso, os estudantes podem até ir bem nas provas, por medo da reprovação. Podem até passar no vestibular, por medo do futuro. Mas esquecerão tudo o que aprenderam logo depois. Rejeitarão o conhecimento que a escola tentou transmitir, como uma forma de reagir ao que percebem como abandono — a sensação de não terem sido vistos nem ouvidos.
Fonte: Carta Capital
0 Comentários