Laélia de Alcântara era médica, nunca havia ocupado cargo político e assumiu mandato em 1981

Porto Velho, RO - Faz pouco mais de 40 anos que o Brasil teve uma mulher negra no Senado pela primeira vez. O pioneirismo coube a Laélia de Alcântara (PMDB-AC), que assumiu o mandato em 1981, no período final da ditadura militar.

A senadora tinha 57 anos e nunca havia ocupado um cargo político. Nascida em Salvador, ela era médica obstetra, vivia em Rio Branco, era casada e tinha sete filhos. Morreu em 2005, aos 82 anos.

Com a chegada da parlamentar, o país passou a ter duas senadoras. O Senado já contava com Eunice Michiles (PDS-AM), branca, que havia quebrado a exclusividade masculina na instituição fazia apenas dois anos.

"Registro com uma ponta de orgulho que novamente coube à Amazônia o privilégio de trazer para esta Casa mais uma representante do sexo feminino, fato que corresponde ao despertar da mulher para um papel mais ativo na sociedade", disse.

Laélia, então, fez seu primeiro discurso: "Agradeço as demonstrações de apreço e carinho. Espero aqui trazer uma pequena contribuição e apresentar alguns dos problemas que o povo do Acre vive sofrendo há bastante tempo".

Ela se elegeu em 1974, como suplente, na chapa encabeçada pelo senador Adalberto Sena (PMDB-AC).

Assumiu o mandato duas vezes. Primeiro interinamente, por quatro meses em 1981, quando Sena ficou afastado para tratar da saúde. Depois em definitivo, em 1982, após a morte do titular. O mandato se encerrou em 1983.

Dentro e fora do Senado, Laélia denunciou o racismo.

"A apreciação feroz do antropólogo Sílvio Coelho segundo a qual 'a atribuição dos subempregos ao contingente de cor foi incentivada por uma sociedade interessada em manter à sua disposição um celeiro de domésticas e lavadores de automóveis' espelha a triste realidade", discursou em um evento na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.

"Já é tempo de os negros não mais 'se situarem nos pontos mais críticos dos gráficos, nos índices mais medíocres das estatísticas, nos parágrafos mais soturnos dos relatórios", completou naquele dia.

No Senado, ela leu uma reportagem sobre uma jovem que foi expulsa de uma boate em Curitiba por ser negra e afirmou: "Ainda vemos que há espíritos escravos de preconceitos".

Na época, tinha força a ideia de que o Brasil era uma democracia racial, com as diferentes raças vivendo em harmonia. A ditadura difundia esse velho mito com o fim de deslegitimar a militância negra.

O senador José Fragelli (PP-MS) deu a entender que o ocorrido em Curitiba era um caso isolado. "Além de uma grande democracia política, o Brasil é um exemplo para o mundo de uma democracia racial, porque aqui não temos preconceitos de qualquer espécie."

Outros senadores afirmaram que o racismo era, sim, um mal disseminado. "Devemos lutar para que não seja um fato raro uma mulher de cor integrar o Senado, a Câmara ou os quadros da vida política ou institucional deste país", disse Pedro Simon (PMDB-RS) ao recorrer ao exemplo da própria Laélia.

Apesar de se posicionar contra o racismo, Laélia não se declarou negra em nenhum de seus discursos. Num deles, ela se descreveu como "mulher, médica, parlamentar e, principalmente, brasileira".

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A historiadora Iracélli da Cruz Alves, que integra a Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros e faz pós-doutorado na Universidade Federal do Maranhão sobre trabalhadoras domésticas na política, explica que, dado o contexto histórico, é compreensível que Laélia não tenha explicitamente se declarado negra perante os demais senadores.

"Mesmo sendo o período final da ditadura, o governo ainda pressionava, censurava e perseguia os grupos e os intelectuais que problematizavam e debatiam a questão racial. Era um campo pantanoso", disse.

Cruz Alves entende que, ao evitar declarar-se negra no Senado, Laélia provavelmente fez um cálculo político.

"Quando uma pessoa negra entra sozinha num espaço de poder que é branco, ela sabe que esse será um local conflituoso e que precisará recorrer a certas estratégias para manter-se nele e obter conquistas para a população negra."

Para a historiadora, a senadora adotou em Brasília uma postura de "silenciamento" sobre a sua raça, mas nunca de "negação". "Pelos discursos, vê-se que estava atenta às demandas do movimento negro e dialogava com ele", afirma.

Laélia redigiu propostas que beneficiavam as mulheres. Uma delas estabelecia que o comando da família caberia em conjunto ao marido e à mulher, e não mais apenas a ele. A mesma proposta permitia que, com o casamento, o homem adotasse o sobrenome da mulher.

Em 1982, no Dia Internacional da Mulher, ela pediu no Senado o fim "da discriminação salarial, da discriminação educacional e de tantas outras que estão impedindo a incorporação da mulher na produção econômica, nas artes, nas ciências, na política".

Eunice a apoiou e acrescentou: "De vez em quando me questionam se sou feminista. Se ser feminista é defender, como Vossa Excelência o faz neste momento, a igualdade da mulher, então eu sou feminista. Agora, se ser feminista é abrigar a disputa com o homem, é entrar no slogan 'abaixo o homem', então não sou feminista e por certo Vossa Excelência também não o é".

O senador Aderbal Jurema (PDS-PE) aprovou o comportamento das colegas. "As senadoras assinalaram com a lucidez e a inteligência de que são dotadas a passagem do Dia da Mulher, sem os exageros feministas."

Laélia não conseguiu convencer os senadores a aprovar nenhum de seus projetos de lei.

A senadora foi ativa na defesa da redemocratização. Na visão dela, o governo do general João Figueiredo parecia pouco empenhado em devolver o poder aos civis. Ela não conseguiu se reeleger. Em 1987, assumiu no Acre a Secretaria de Estado de Saúde.

A historiadora Iracélli da Cruz Alves explica por que a primeira senadora negra é hoje praticamente desconhecida.

"Quase não existem pesquisas acadêmicas a respeito dela. Esse silêncio é um sintoma do racismo estrutural. O protagonismo dos negros na nossa história é apagado. A trajetória da senadora mostra que os negros conseguem, sim, ocupar os diferentes espaços da cena nacional e influenciar o curso da história", diz.

Para Cruz Alves, a simples presença do corpo de uma mulher negra naquele espaço de poder teve uma importância imensa.

"Primeiro, por provocar debates sobre o racismo. Sendo Laélia negra, senadores a interrogaram sobre esse tema e ela se posicionou. Se fosse branca, o tema não apareceria. Depois, por causa da representatividade. Esses homens brancos viram que aquele espaço não era só deles. As mulheres negras e os homens negros viram que também poderiam estar lá. O debate e a representatividade, sozinhos, não derrubam estruturas, mas são importantes para a mudança."

Terminado o mandato de Laélia, em 1983, as mulheres negras precisaram esperar mais de uma década para se verem novamente no Senado. As senadoras Benedita da Silva (PT-RJ) e Marina Silva (PT-AC) tomaram posse em 1995.

RAIO-X | LAÉLIA DE ALCÂNTARA

Primeira senadora negra, Laélia nasceu em Salvador, formou-se médica no Rio de Janeiro e viveu em Rio Branco, no Acre. Ela se elegeu em 1974, como suplente, na chapa encabeçada pelo senador Adalberto Sena (PMDB-AC), e assumiu o mandato duas vezes. Primeiro interinamente, por quatro meses em 1981, quando Sena ficou afastado para tratar da saúde. Depois em definitivo, em 1982, após a morte do titular. Ela morreu em 2005, aos 82 anos.

Fonte: Folha de São Paulo