OUTRO LADO: Advogado de policiais diz não poder comentar suspeitas; Governo cearense afirma repudiar 'qualquer ato que atente contra a dignidade humana'
Porto Velho, RO - O detento Josué Ferreira Batista Filho, 24, sentia o coração disparar sempre que ouvia o portão da ala sendo aberto. Segundo relato dele às autoridades, ele mal conseguia dormir devido ao medo de ser alvo de novas agressões de agentes dentro da cela —ou, ainda pior, ser levado para o "quartinho do amor".
O cômodo também era chamado de "sala do amor" e "quarto pânico" pelos presos da Uppoo 2 (Unidade Prisional Professor Olavo Oliveira 2), de Itaitinga, no Ceará. Conforme investigação da polícia e da Promotoria, o local era usado por policiais penais para torturas individuais.
"Se é certo que a prática da violência física e psíquica era ordinariamente empregada no dia a dia daquela unidade prisional no interior das celas, ruas e pátios, mais certo ainda que, para determinadas situações, mais complexas e sensíveis, contavam os policiais penais denunciados com um ambiente físico especialmente dedicado para a prática criminosa", diz denúncia do Ministério Público.
A Upppo 2 é a unidade onde a Justiça encontrou em setembro do ano passado 72 presos feridos, supostamente espancados por agentes penitenciários. Parte das vítimas tinha os dedos fraturados.
Como mostrou a Folha, o Ceará é um dos cinco estados brasileiros nos quais organismos de combate à tortura detectaram uma técnica desenvolvida por policiais penais para quebrar os dedos de presos, sob a alegação de buscar reduzir o poder de reação deles contra os agentes.
Batista Filho é uma dessas 72 vítimas. É, também, um dos presos ouvidos pela polícia e pela Justiça que confirmaram a existência do "quartinho do amor". Parte deles afirmou saber disso por meio do relato de colegas e, outra parte, por ter conhecido o local por dentro.
"Os detentos mais indisciplinados eram levados para esse local para serem agredidos, para tentar diminuir essa rebeldia deles. Estou dizendo, obviamente, do teor do que disseram os detentos, porque nenhum policial admitiu a existência desse 'quartinho do amor'", disse o promotor Humberto Ibiapina Lima Maia, do Nuinc (Núcleo de Investigação Criminal), responsável pela investigação.
O detento Vitor Rodrigo Ferreira Trindade, 22, disse às autoridades cearenses que foi levado ao "quartinho" várias vezes. Sempre era colocado nu e espancando. Geralmente, ainda segundo ele, quatro agentes participavam das agressões e usavam cassetete, spray de pimenta, faca e lanterna de choque.
"Pegavam uma embalagem preta, colocavam spray de pimenta dentro e colocavam no declarante. Que o declarante desmaiava cerca de quatro, [a] cinco vezes; que quando acordava, mandavam o declarante ficar com a cabeça no chão e pernas esticadas, sem roupa; que eles batiam nos braços dele com cassetete", diz trecho do depoimento de Trindade à Polícia Civil do Ceará.
As investigações da polícia e da Promotoria apontam que alguns presos eram levados para o local por suposta ligação com o crime organizado. O local também era usado para desestimular denúncias de maus-tratos na unidade.
"Que os presos eram levados para lá para serem torturados, isso em razão de denúncias feitas por familiares contra as torturas sofridas na unidade; que esse método era para que os presos sensibilizassem os demais para que não mais fizessem denúncias através do 155 ou mesmo de seus familiares ou advogados", disse o preso Jefferson Campos do Nascimento, em depoimento.
De acordo com defensor público Delano Benevides de Medeiros Filho, um dos integrantes do grupo que encontrou os 72 presos feridos, inicialmente as vítimas de setembro de 2022 ficaram reticentes em admitir terem sido alvo de agressões por parte dos agentes, com medo de represálias.
"Com certeza eles tinham medo de, de repente, falar alguma coisa, e algum policial penal ficar sabendo e levarem eles para o 'quartinho' para bater e torturar", afirmou.
Os presos também foram praticamente unânimes em afirmar que o "quartinho do amor" foi criado após o policial Pedro Paulo Sales da Mata, 29, assumir a direção da unidade prisional em fevereiro de 2022, quando, também, os casos de maus-tratos se intensificaram.
Da Mata, como é conhecido, é um dos seis policiais denunciados pelas agressões em setembro e teve a prisão decretada pela Justiça no final do ano passado. Atualmente, está em prisão domiciliar. Segundo relato dos presos, o próprio diretor participava das torturas.
"Da Mata sempre dizia que não tinha medo de ninguém, que tinha as costas largas, que ele era o número um carrasco do Estado, que já estavam falando em todo canto e não estava nem aí", afirmou o preso Marcos Antonio Sinatro da Silva Filho, também em depoimento às autoridades.
O diretor Da Mata, ainda conforme denúncia da Promotoria, provocou polêmica em março de 2022, logo após assumir a Uppoo, quando divulgou um vídeo na internet em que aparece cantando música, durante atividade física, fazendo apologia à violência. "Eu tenho gosto de sangue / Vontade de matar / Bate na cara, espanca até matar / Arranca a cabeça e joga ela para cá", diz trecho da canção.
De acordo com a promotora Anna Gesteira Valsani, da 2ª Promotoria de Justiça de Itaitinga, a decisão da Justiça sobre a situação dos policiais penais deve ser conhecida ainda neste ano. Segundo ela, os seis agentes são acusados pelos crimes de associação criminosa e de tortura.
"A instrução tá quase acabando. Foram seis dias de audiência, em que foram ouvidas as vítimas, as testemunhas indicadas pela acusação e pela defesa. Os réus também foram interrogados", disse ela.
ADVOGADO DE SUSPEITO NÃO QUIS COMENTAR PROCESSO
O advogado Paulo Quezado, que defende Da Mata e outros quatro policiais penais acusados de tortura, afirmou à Folha que não pode comentar o assunto em razão do sigilo do processo. Ele também não quis se manifestar nem mesmo das informações já públicas.
A secretaria da Administração Penitenciária do Ceará disse que "repudia qualquer ato que atente contra a dignidade humana" e que recebe regularmente visitas "de instituições fiscalizadoras, como o Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, além de entidades de controle social".
"Sobre o caso específico questionado e ocorrido no segundo semestre do ano passado, tanto o Poder Judiciário, como o Ministério Público e a Controladoria Geral dos Órgãos de Disciplina e Segurança Pública já tomaram suas medidas legais e contaram com o apoio célere e transparente da SAP", diz a nota.
A pasta não informou a atual situação dos policiais penais nem o perfil de cada um deles. A pasta também não informou o nome do responsável pela indicação de Da Mata como diretor da Uppoo 2.
Fonte: Folha de São Paulo
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