O presidente da Rússia, Vladimir Putin, em evento no Quirguistão - Serguei Bobiliov - 9.dez.22/Sputnik/Pool via Reuters

Porto Velho, RO - "Quando um não quer, dois não brigam," disse nenhum chefe de Estado democrático quando Hitler invadiu a Tchecoslováquia em 1939, num reino de terror que custou a vida de 345 mil.

Metáforas pedestres não prestam, de maneira geral, para discutir política externa, especialmente como referência ao maior ataque militar não provocado desde a Segunda Guerra Mundial, lançado há um ano —uma ocupação cujas atrocidades valeriam múltiplas condenações no Tribunal de Haia.

Quando ouço o presidente que teve meu voto falar sobre a imensa tragédia ucraniana, sou transportada no tempo para minha adolescência de mimeógrafos, diretórios estudantis e esquerdismo infantil.

Se a pauta da reunião apressada da sexta-feira (10), em Washington, inclui o extremismo político que gerou tentativas de golpe no Brasil e nos EUA; se os dois aliados concordam sobre a gravidade da disseminação de informação falsa, Lula e Biden têm papo para um fim de semana inteiro ao pé da aconchegante lareira de pedra em Camp David.

Nesta quarta-feira (8), um time de investigadores internacionais revelou "fortes indícios" de que Vladimir Putin autorizou a transferência para os "separatistas" em território ucraniano de armas como o míssil Buk, que derrubou o avião da Malaysia Airlines sobre a Ucrânia em julho de 2014, matando 298 civis. A carnificina ocorreu quatro meses depois da invasão e anexação da Crimeia e foi rapidamente debitada da conta do Vladimir por valorosos repórteres investigativos cooperando em vários países da Europa.

Desde a primeira invasão da Ucrânia, há nove anos, assistimos ao deplorável relativismo moral de —deixo claro— apenas uma parte da esquerda, que emoldura crises no contexto da Guerra Fria e de clichês contra o imperialismo ianque —um mal que seria combatido com o imperialismo do cosplay de tzar, ex-agente bundão da KGB, gângster e assassino em massa, o cabra que precisa continuar aboletado no Kremlin para continuar vivo.

Nesta semana, uma reportagem suprimida em julho de 2020 viu a luz do dia no site britânico Byline Times. A reportagem foi encomendada pela mãe de todas as publicações protetoras da santidade da imprensa independente, a Columbia Journalism Review, ligada à mais prestigiada escola de jornalismo nos EUA, na Universidade Columbia.

De acordo com o jornalista investigativo britânico Duncan Campbell, a reportagem, encomendada para investigar o quanto a centenária publicação de esquerda The Nation estava no bolso de Moscou, foi censurada, numa acomodação stalinista repulsiva.








Voluntários distribuem comida em estação de metrô usada como abrigo antiaéreo no norte de Kharkiv, na Ucrânia Thomas Peter - 24.mar.22/Reuters

O cardinalato que informa Lula sobre a invasão da Ucrânia —injustificável sob qualquer critério moral ou ideológico— quer que acreditemos que há "duas lógicas" em jogo e reserva tolerância para a anexação da Crimeia e condenação idiota a noções expansionistas da Otan usando, como argumento, até comentários do impune genocida Henry Kissinger.

O Estado brasileiro –e a diplomacia é de Estado, não de partido— nada tem a ganhar acomodando o autoritarismo fascista de Vladimir Putin, Narendra Modi ou Recep Tayyip Erdogan. O governo que trouxe Marina Silva de volta precisa parar de relativizar o papel dos assassinos da democracia.

Fonte: FOLHA
Lúcia Guimarães *
É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.