Tanaru sobreviveu a genocídio, não quis contato com ninguém e, sozinho, preservou uma mancha verde em Rondônia

Porto Velho, RO - Um homem pode, no curso de uma vida, construir 53 casas para si próprio, uma após a outra –às vezes uma a cada mês–, de forma a garantir seu permanente estado de fuga e sua sobrevivência.

Também está no campo das possibilidades humanas viver em isolamento, sozinho, em negação constante do convívio e do contato por décadas a fio, em razão do extermínio de um povo inteiro.

Tanaru, o "índio do buraco", encarou de perto o extermínio e passou a olhar sempre de longe para seu entorno.

Depois de décadas de um isolamento na mata no sul de Rondônia, o corpo do indígena –o último de seu povo– foi encontrado por servidores da Funai (Fundação Nacional do Índio) numa rede, dentro de sua última palhoça, em 23 de agosto.


Em cada uma das palhoças, Tanaru cavou um buraco no chão para alcançar algum sentido místico, espiritual ou cosmológico para sua vida.

Sozinho, foi responsável por preservar uma ilha de vegetação amazônica, de 8.070 hectares, rodeada de descampados e fazendas na região de Corumbiara (RO).

A morte de Tanaru encerrou a saga de um indígena sobrevivente de um genocídio nunca investigado –o termo e a constatação de que nunca houve apuração e punição são do Ministério Público Federal no estado.

O entorno de Tanaru estava interessado em seu desaparecimento. Fazendeiros que circundam a área protocolaram na Funai, nos momentos seguintes à divulgação do óbito, pedidos para derrubar a restrição de uso do território.
A movimentação, inclusive, antecedeu a própria morte. Eram frequentes abordagens de fazendeiros a equipes que atuam na região com sondagens sobre o que ocorreria com a área quando o "índio do buraco" morresse.

Nenhum dos fazendeiros quis falar com a Folha. São arrendatários ou compradores dos terrenos que não participaram necessariamente das primeiras aquisições, nos anos 1970, e sabem que seus interesses prevalecem aos direitos dos povos originários, especialmente no governo de Jair Bolsonaro (PL), que terminará em um mês e meio.

O ato do presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier da Silva, diante da morte deixou a constatação evidente. Ele barrou o enterro do "índio do buraco", mesmo com exames concluídos pela Polícia Federal, que não encontrou indícios de morte violenta ou que Tanaru tenha sido vítima de um crime.

Foram necessárias uma ação civil pública do MPF e uma decisão da Justiça Federal para garantir o enterro na palhoça onde o indígena foi encontrado.

A vida de Tanaru provou que o interesse em seu desaparecimento sempre existiu. E isso explica a opção pelo isolamento radical.

Na década de 80, fazendeiros deram açúcar com veneno ao grupo indígena, segundo relatos feitos ao indigenista aposentado da Funai Marcelo dos Santos, 69.

Ele atuou na região entre as décadas de 70 e 90 e foi responsável pelos trabalhos de campo que provaram a existência do "índio do buraco", com identificação das palhoças e um primeiro contato com o indígena na segunda metade dos anos 90.

O encontro foi registrado pelo documentarista Vincent Carelli no documentário "Corumbiara", de 2009. Nos trabalhos de campo do filme, outra presença constante é do indigenista Altair Algayer, coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental do Guaporé, da Funai, que catalogou cada palhoça, manteve o monitoramento da área e foi decisivo para o respeito à vida escolhida por Tanaru.

Segundo Santos, os "índios dos buracos" faziam visitas a pontos das fazendas vizinhas duas ou três vezes por ano. Eram quatro ou cinco homens, e buscavam açúcar, facão e produtos da roça.

"Numa dessas visitas, um proprietário pediu para funcionários darem açúcar com veneno", afirmou.


Indígena que vivia isolado na Terra Indígena Tanaru, em Rondônia; ele foi encontrado sem vida em sua rede de dormir Acervo/FunaiMAIS

Depois, houve um ataque a tiros aos indígenas —descritos como "brabos", "cabeludos" e que costumavam ficar nus— seguido da derrubada e queima de palhoças.

Por fim, só um passou a ser avistado. Um funcionário de uma madeireira, na década de 90, achou uma palhoça a 40 km do acampamento dos servidores da Funai –Santos entre eles– para tentar localizar indígenas. Era o "índio do buraco", o único sobrevivente de seu povo.

Houve várias tentativas de aproximação, geralmente recusadas por ele, que também não aceitava coisas comestíveis. No início, por se sentir ameaçado, flechou um servidor da Funai, que sobreviveu. A insistência inicial no contato era um dos motivos para as mudanças do indígena, concluíram.

Com o tempo, a Funai consolidou o entendimento de que a melhor política era o respeito ao isolamento voluntário, garantindo a preservação das áreas usadas para a subsistência e o modo de vida tradicional.

Tanaru passou a conhecer integrantes da Funai e chegava a alertar sobre armadilhas, como buracos preenchidos com espetos para caçar porcos do mato.


Outra palhoça construída pelo "índio do buraco" - Acervo/OPI

O hábito de cavar buracos no solo das palhoças não tem relação com segurança, caça ou preparo de espaço para dormir. Eles eram também cavados por outros integrantes de seu povo, e não há descrição do hábito por nenhum outro grupo no país, conforme estudiosos.

O motivo mais provável, dizem, é que os buracos tinham algum elemento espiritual. O último feito por ele tinha mais de dois metros de profundidade e era estreito, sem sinal de uso.

Tanaru era um indígena alto para os padrões: 1,74 m, segundo análises de antropologia forense descritas à reportagem, e calcula-se que tinha mais de 60 anos de idade.

MANTIMENTOS

Na palhoça onde morreu, havia uma grande quantidade de milho armazenado e bastante mamão na roça plantada. Antes da vida solitária, ele e os familiares também viviam de plantações e da caça, segundo indigenistas.

Os servidores da Funai encontraram na palhoça machados, arcos, flechas, pedras de amolar, duas panelas de alumínio, lâminas de facão e de faca, um facão gasto e uma foice.

Antes de morrer, ainda segundo relatos, derrubou três árvores para coleta de larvas comestíveis, fez coleta de mel em outras cinco árvores, cavou sete buracos como armadilhas para animais, coletou castanha e extraiu resina.

O isolamento se estendia à relação com outros povos da região, embora tenham existido contatos visuais, troca de assovios e de presentes, como flechas, segundo documentos.

Tanaru se preparou para a morte. Usava um "chapéu" na cabeça e plumagens de penas de arara na nuca, presas ao pescoço. Do pescoço, pelas costas, desciam fios de fibras de buriti. O indígena tinha o hábito de usar esses fios. Num vídeo da Funai em 2018, em que aparece cortando uma árvore com um machado, usava o adorno.

Arcos e flechas estavam escorados ao lado da rede onde morreu. Os pertences permanecem nos seus lugares, dizem os servidores.

Depois de o presidente da Funai barrar, o enterro foi feito no mesmo local da morte. Purá, um dos três kanoés sobreviventes do povo que vive na terra Rio Omerê, conduziu o sepultamento.

A despedida foi feita seguindo as tradições dos povos indígenas da região: kanoé, akuntsú e tupari. A etnia de Tanaru e seu povo nunca foi identificada.

DESTINO DA TERRA INDÍGENA

Agora, persiste a dúvida sobre o destino da terra indígena, território não demarcado cuja preservação é garantida por uma portaria da Funai que determina a restrição de uso da área, válida até 2025.

Portarias do tipo são editadas para territórios onde há indígenas isolados e inexiste demarcação. Com a morte do "índio do buraco", a Funai pode revogá-la.

Cinco fazendas circundam a área. Os donos dizem ter adquirido o território na década de 70, dentro da política de destinação da Amazônia adotada pela ditadura (1964-1985).

Desde sempre, há pressão por mais desmatamento e espaço para criar gado. A Funai não respondeu aos questionamentos da Folha sobre qual será a postura em relação à área.

Para o indigenista que localizou Tanaru, não há dúvidas de que a terra é da União e precisa ser preservada. "Os fazendeiros adquiriram a área antes da confirmação da presença dos índios. Esses títulos emitidos são nulos perante a lei, a venda nem deveria ter ocorrido. Quem demarcou os lotes já tinha encontrado vestígios dos índios", diz Santos.

O indigenista questiona: "Vão liberar a área para ocupação a quem está por trás desse genocídio?".

Fonte: Folha de São Paulo