Militantes LGBTQIA+ acham que personagem só reforça preconceitos

Porto Velho, RO - Nesta terça (19), o F5 publicou uma entrevista de Neandro Ferreira à editora Cleo Guimarães. O hair designer carioca, radicado em Londres, revelou que será um dos destaques do desfile da escola de samba paulistana Gaviões da Fiel, programado para o próximo sábado (23).

"Vou vir como um Bolsonaro bem gay, bichíssima, dando muita pinta", contou Neandro, escancarando o que até então seria um segredo. O personagem surgiria na ala Governantes e Generais, dentro do enredo "Basta!", criado pelo carnavalesco Paulo Barros.

O samba da escola tem o humorista Marcelo Adnet entre seus compositores. A letra, apesar de não citar nomes, tem um claro teor político, pois fala em fascismo, mazelas sociais, militância e na "cega justiça que enxerga o negro como um réu".

A matéria repercutiu imediatamente, sendo replicada por outros veículos de imprensa e provocando celeuma nas redes sociais. Na noite de terça, a Gaviões da Fiel negou tudo. A escola postou em seu perfil no Instagram uma "nota oficial", acusando a Folha de espalhar fake news e sustentando que seu enredo "traz uma mensagem cultural, não tratando de questões políticas" –o que, haja vista a letra do samba, simplesmente não é verdade.

Mas o que eu quero discutir aqui é outro ponto. Além das previsíveis reclamações de bolsonaristas, a entrevista com Neandro Ferreira suscitou críticas entre muitos internautas LGBTQIA+, alguns deles militantes históricos da causa.

O ponto levantado por esse pessoal é que, ao retratar o presidente como alguém "bem gay, bichíssima, dando muita pinta", a Gaviões da Fiel estaria reforçando a homofobia. Afinal, se a homossexualidade é uma coisa normal, ela não pode ser usada para insultar ninguém.

Eu sou de uma geração que cresceu contando piadas de bicha e xingando os desafetos de "viados" (a mesma de Neandro, aliás). Mesmo sendo gay, eu também já ri muito com anedotas do gênero, mesmo as mais ofensivas. Agora percebo como eu estava errado.

Os gays efeminados, de trejeitos acintosos, sempre foram usados pela cultura popular como um aviso aos incautos. "Você quer ser motivo de chacota como a Vera Verão ou a Valéria do "Zorra Total"? Então não seja uma bicha louca. Controle-se, seja macho, ou pelo menos finja que é".

Reforçar esse estereótipo de maneira negativa é, sim, reforçar a homofobia. Jair Bolsonaro tem dezenas de defeitos gravíssimos, mas sua suposta homossexualidade não está entre eles.

Muita gente acredita que o presidente seja um gay enrustido, graças a expressões como "abraço hétero", "amor à primeira vista" (declarado quando conheceu o atual PGR, Augusto Aras) e "você tem uma cara de homossexual terrível", dirigida a um repórter que lhe fez uma pergunta incômoda.

Mas tudo isso é mera especulação. O que se pode afirmar com certeza sobre Bolsonaro é que seu sentido de masculinidade é extraordinariamente frágil. Caso contrário, ele não precisaria revelar ao mundo que deu "um bom dia mais que especial" à primeira-dama, ou fazer arminha com as mãos, um óbvio símbolo fálico.

Voltemos à polêmica nas redes sociais. É verdade que muita coisa ofende a nova geração, criada a leite de pera. Não faltaram queixas, por exemplo, aos personagens homofóbicos de "Pantanal", que estariam acionando "gatilhos" nos mais sensíveis. Quer dizer então que nem na ficção a homofobia é possível? Nem que seja, como no caso da novela, para criticá-la?

Sem falar no ridículo caso da foto de uma onça devorando uma capivara, tirada do ar depois que corações delicados exigiram que o felino se comportasse como um ser humano adepto do veganismo. "Não se pode romantizar uma imagem como esta", disse um deles. Só que ninguém está romantizando nada: onças comem capivaras na vida real, e não há cancelamento que reverterá isto.

Entretanto, no caso do "Bolsonaro gay" da Gaviões da Fiel, sinto que as patrulhas acertaram em cheio. O destaque certamente irritaria os fanáticos pelo presidente, o que é sempre divertido –mas cairia feito uma luva na estratégia bolsonarista de embarcar em qualquer coisa que cheire a guerra cultural, muito bem identificada por Anitta.

Portanto, a escola de samba fará bem se a versão "bichíssima" do mandatário não entrar no sambódromo. Faria ainda melhor se assumisse que sim, o enredo "Basta!" é político, e que seus alvos não precisam ser nomeados para serem conhecidos.

Fonte: Folha de São Paulo