
Programado para o ano que vem, 'Meu nome é Gal', de Dandara Ferreira e Lô Politi, mostará como cantora se tornou um símbolo de liberdade para as brasileiras
Porto Velho, RO - Segunda-feira de sol na Praia de Ipanema, trecho em frente ao Jardim de Alah, março de 2022. A não ser pelo protetor solar que circula de mão em mão, parece um retorno de 51 anos no tempo: com visual hippie, jovens se reúnem em torno de uma cantora, um violonista e um poeta para cantar “Vapor barato”, hino do desbunde nos anos de chumbo.
O poeta circula trôpego, por entre a garotada em transe, e a uma certa altura pede a atenção de todos para discursar: “Fica oficialmente decretado por todos nós aqui presentes que este lugar mágico, livre, nosso, as Dunas do Barato, daqui para a frente e para todo sempre serão as Dunas da Gal!”
Corta. Repetida diversas vezes pelos atores, esta é uma das cenas de “Meu nome é Gal”, filme das diretoras Dandara Ferreira e Lô Politi que vai reconstituir a vida de uma das maiores cantoras do Brasil, a baiana Gal Costa, no período entre 1967 (quando ela grava seu primeiro LP, com Caetano Veloso) e 1971 (quando estreia o mítico show “Fa-tal”).
Terminadas as gravações da cena, Sophie Charlotte (que terá em Gal o seu primeiro papel de protagonista no cinema), Barroso (Jards Macalé, o violonista) e George Sauma (Waly Salomão, o poeta e coautor com Macalé de “Vapor barato”) voltam às suas realidades cotidianas — mas o clima das Dunas da Gal não se vai.
— Gil e Caetano tinham ido para o exílio, então em 1971 a Gal tem uma turma e novos parceiros, que são o Waly e o Macalé, e isso dá no “Fa-tal” que, querendo ou não, é uma continuação das estéticas tropicalistas — analisa Dandara (filha de Juca Ferreira, ministro da Cultura nos governos Lula e Dilma), que tinha dirigido a série documental “O nome dela é Gal” para a HBO.
O filme começa com a vinda da Gal para o Rio. Depois, ela vai para uma São Paulo fria e aí, de volta ao Rio, as coisas começam a esquentar. O documentário serviu de base para o filme, mas agora é o nosso olhar sobre essa história.
Codiretora, com Anna Muylaert, de “Alvorada” (documentário sobre o impeachment de Dilma Roussef), Lô Politi explica que “Meu nome é Gal” não é exatamente uma cinebiografia, mas um filme sobre “a transformação interna” de Gal e sobre como a cantora se posiciona no mundo com o seu corpo.
— A gente fala que esse filme é quando a Gal sai da bolha. É quando aquela menina com uma timidez muito forte se torna a mulher do “Fa-tal”. Tudo acontece num período muito curto, de quatro anos. A Gal transforma uma geração de mulheres, com uma revolução comportamental que começa no Rio e se espalha pelo Brasil — ela diz, em meio a um set de filmagem quase todo feminino.
É de bom tom que filmes sobre mulheres sejam dirigidos por mulheres, mas nesse caso ainda mais. A Gal tem uma coisa que reflete o comportamento de todas nós.

A cantora Gal Costa na praia de ipanema, na década de 1970 Foto: Divulgação
Aos 32 anos, mãe do pequeno Otto, Sophie Charlotte era só alegria em poder recriar, em um cenário bem próximo ao das Dunas da Gal de fato, aquele momento crucial para uma de suas ídolas.
— A Gal é a resistência pelo corpo, pela arte, pela moda, pelo comportamento. No fim, a gente compreendeu que aquilo ali é uma mulher se fazendo, se potencializando e se libertando — diz a atriz, que chegou a conversar algumas poucas vezes com a cantora, depois das primeiras filmagens para o longa. — Tive bastante tempo para ir desfolhando as camadas dessa mulher extraordinária. Meu processo foi de aproximação e reverência.
Se o ator e músico carioca George Sauma não teve a oportunidade de se encontrar com o baiano Waly Salomão (1943-2003), Barroso (ator e músico paulistano do Capão Redondo) não precisou de muito para trombar com Jards Macalé em um restaurante em São Paulo.
— Ele tinha saído para fumar e se assustou um pouco. Conversamos um pouquinho, hoje somos amigos no Instagram — diz. — O mais importante para o filme, porém, foi a convivência entre os atores do elenco.
Por sugestão de Sophie Charlotte, alguns dos atores escalados para o filme — além de George Sauma e Barroso, “Meu nome é Gal” ainda tem Rodrigo Lelis (Caetano Veloso), Dan Ferreira (Gilberto Gil), Camila Márdila (Dedé Gadelha, a então mulher de Caetano), Chica Carelli (Mariah, a mãe da cantora baiana) e Luiz Lobianco (o empresário Guilherme Araújo), entre outros — passaram três meses num sítio em Cotia (SP), numa espécie de residência artística. E ali a diretora Dandara Ferreira decidiu que o papel de Maria Bethânia ia acabar ficando mesmo em suas mãos.
— Estava muito difícil de achar uma Bethânia para o filme, e não só pela aparência física, mas pela luz e o jeito dela. Eu tinha feito teatro, e durante os ensaios a Sophie e a Chica disseram que tinha que ser eu. É mais uma homenagem, por eu estar tão imersa nessa pesquisa. Bethânia aparece pouco no filme, mas é uma presença muito forte — ela diz.
Canções serão interpretadas pelos próprios atores
Uma particularidade de “Meu nome é Gal” é que, apesar de o filme contar as histórias de algumas das interpretações mais célebres da MPB, nenhum fonograma de Gal Costa será usado — todas as vozes que se ouvirão no longa serão dos atores, que para isso contaram com a preparação vocal da cantora Tatiana Parra. Rodrigo Lelis, que nunca tinha soltado a voz em cena, foi até mais longe e aprendeu a tocar violão para interpretar Caetano. E mesmo Sophie, que já cantava antes, investiu no estudo.
— A Gal tem um jeito muito especial de cantar. Ela conta uma história numa estrofe e, quando tem uma repetição, já é outra história. E a evolução de seu canto nesses anos em que o filme se passa é algo que fui descobrindo aos poucos. Não é que Gal não tivesse essa potência, o rock’n’roll já estava ali, na moça bossanovista — explica Sophie, que encarou o desafio de reproduzir a sua voz na recriação do show “Fa-tal”, montada pelo diretor musical do filme, o arranjador Otavio de Moraes.
Filmado em São Paulo e no Rio de Janeiro, com produção da Paris Entretenimento e da Dramática (e coprodução da Globo Filmes), “Meu nome é Gal” tem previsão de estreia para o primeiro trimestre de 2023. O sonho das diretoras é fazer um lançamento festivo no verão em Salvador, com as presenças de Gal (que, segundo elas, não quis acompanhar as gravações, preferindo ver o filme pronto) e os outros Doces Bárbaros Caetano, Gil e Bethânia.
Fonte: Estadão
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